Falar de alguém que se ama conjugando um tempo passado não faz parte ainda da minha vida.
Principalmente quando se fala do seu pai.
Eu sempre disse que pode dar tudo errado na sua vida, mas teremos sempre nossos pais para nos receberem de braços abertos.
Fiquei muito reticente em escrever sobre isso no blog por vários motivos. Primeiro porque o sofrimento me levou as palavras e as ideias, eu queria muito escrever algo bonito, mas não consigo. Segundo, porque queria poupar meus familiares. Por último, porque quando estava desolada e triste, encontrava nesse espaço um lugar para desanuviar, para escrever aleatoriedades, postar minhas crenças.
Há um ano e 2 meses recebi a notícia que mudaria muito a minha vida.
Meu pai foi diagnosticado no dia do seu aniversário com um temido câncer de pâncreas. Lembro que na época tentei disfarçar e seguir em frente, mas até algumas leitoras repararam no meu semblante.
Há um ano e 2 meses disfarço tristeza com sorriso. Na verdade descobri que o sorriso é inerente: não se desvencilha do meu ser. Não sei ainda se ele disfarçava ou se era a força, um reflexo da minha alma que me fazia seguir adiante.
Nesse período eu perdi muito cabelo, travei minhas costas, senti dor no estômago, fiquei com a cara toda empipocada, meus lábios racharam, adquiri uma insônia diária, minha memória se esvaiu, meus ombros endureceram. Me desesperei, me enchi de esperança, senti fraqueza, senti raiva, senti amor, segui a vida, me senti sozinha, me julguei culpada, movi um mundo, fiquei do lado dele.
Acompanhei sua revolta, sua esperança, sua tristeza, sua vontade de se fechar em um mundo só seu, o vi pesar 40 incríveis quilos, ouvi suas reflexões sobre a estrela que sempre o visitava no anoitecer.
Chorei muito escondida. Nunca acreditei que isso estaria acontecendo, nunca aceitei a possibilidade da perda de alguém tão novo, com 62 anos.
Por muitas vezes fiz das tripas coração para continuar adiante. Nem eu creio que consegui. A gente é mais do que imagina.
Meu pai estava longe de ser perfeito. Senti falta dele em vários momentos, mas sempre o perdoei por ter tido uma vida tão, mas tão difícil, que muita gente que se lamuria por pouco por aí não teria a compreensão de entender um décimo do que seria.
Com ele aprendi a amar caligrafia, a desenhar (e seguir o design gráfico como carreira), a ser perfeccionista, a ser comprometida, a amar Beatles, a amar os animais (ele já foi vegetariano), a ser macrobiótica quando ninguém nem sabia o que era arroz integral, a amar violão mesmo sem nunca ter aprendido, a ver que não precisamos ter carro quando o amor nos faz suportar levar os filhos ao hospital nos braços, a ser mais tolerante (mesmo que ele não fosse), a detestar ouvir Roberto Carlos (ele amava em uma época, rs), a me virar desde cedo porque a vida era assim, a não desistir dos meus sonhos (ele fez mais uma faculdade e mudou de carreira aos 50 anos), a prezar pelo bom português, a torcer pelo América (e ser zoada por isso), a ser devota de São Francisco de Assis, a interpretar MPB quando ninguém da minha idade compreendia, a ter um coração tão grandioso, mas tão grandioso, que talvez o mundo não pudesse compreender tanta bondade.
Nas últimas semanas ele foi internado e aprendi mais sobre o que é o amor incondicional. Sobre como ele vem de onde e de quem menos esperamos. Que um pequeno gesto traz a alegria a quem mais precisa dela. Aprendi que amar é libertar (obrigada por me ajudar nas palavras, Tayná). É desejar o que nem sempre é o que gostaríamos, mas que traria paz a alguém que sempre trouxe luz nas nossas vidas.
E finalmente ele voou. E meu coração permanece dilacerado, mas tranquilo, certa de que foi um voo leve para uma compreensão que sua alma precisava.
Tudo tem sido muito, mas muito difícil pra mim. Há um mês perdi minha avó, mãe dele, em mais uma luta após várias internações. Foi um ano pauleira, que transformou completamente quem eu sou e mudou minha família.
Quero agradecer a todo o carinho, emails, mensagens e comentários bacanas que li no blog nesse tempo. Mesmo sem saberem, vocês foram responsáveis por momentos felizes, por trocas bonitas de ideias, pelo meu crescimento. Vocês foram essenciais para que eu me mantivesse em pé e com um sorriso no rosto.
Vou deixar meu coração acalmar, tenho uma postagem agendada de looks que fiz antes, quero que a recebam com carinho na semana que vem.
Vou ficar bem. Já já eu volto <3
Enquanto isso, gostaria de compartilhar com vocês minha tentativa de escrever bonito para meu pai. Ele merece.
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A partir de hoje seguirei carente da palavra Pai. Não saberei mais pronunciá-la sem sentir um vazio, sem passar por uma saudade.
Mas somente no dizer, apenas no falar. Em meu peito carrego um Pai enorme, que diz muito quem sou hoje.
Um Pai que partiu jovem e que teve muitas fraquezas, que tinha asas tortas, que sofreu muito com seu coração gigante e com sua sensibilidade. Era cabeça-dura, se privou de muitos sorrisos e tinha uma existência tumultuada.
Hoje eu percebo que ele era uma criança. Era alguém que queria apenas ser cuidado, ser amado e acalentado.
Nas suas últimas semanas ele me ensinou mais do que em 35 anos da minha vida. Foi grandioso, aceitou o amor que recebeu, persistiu com sua lucidez, não sucumbiu a uma doença que o definhou.
Ele voou com suas asas mal ajambradas, levou consigo sua integridade, sua hombridade, sua altivez e uma falta de paciência com um mundo que parecia não compreendê-lo. Mas deixou suas mulheres aqui, mais fortes e, por incrível que pareça, mais felizes por terem tido a oportunidade de conviver com alguém tão iluminado.
Seu Jesus, sei que não era seu desejo (para que eu não sofresse!), mas sou muito de você: herdei as asas tortas. E olha que coisa boa; aprendi a voar mesmo assim <3