Qual é o discurso que estamos comprando?

“Ana, a Loja 3 mostra quem costurou as peças nas etiquetas das roupas, olha que bacana”. 

Recebi muitos comentários contando essa novidade da marca. Nesse ínterim, uma amiga contou de alguns relatos de abuso com os funcionários agora em janeiro, cheguei a mandar mensagem para marcar uma visita à fábrica, mas nunca veio o retorno. Aliás, há anos que eu não entrava nas lojas da marca e até me assustei ao saber que tinha aberto em São Paulo mais duas lojas.

Há poucas semanas a amiga de uma amiga veio mostrar toda feliz um vestido preto comprado na Três por QUARENTA E NOVE REAIS. Eu perguntei de novo o preço. Eu sabia que os preços da Três não eram caros, mas também pensei que a conta não fechava para custarem tão barato, mesmo numa liquidação. Qual era a diferença pra uma fast fashion?

Hoje o nosso dia foi tomado com a denúncia do Universa Moda de racismo, gordofobia e assédio moral da loja Três, marca carioca que mantinha o slogan “Três por vocês”, por desenvolver, de forma colaborativa, coleções com influenciadores, profissionais da moda e artes, em uma velocidade digna de fast fashion. A marca, cujos donos são a mãe, Guta Bion, e seus dois filhos, Francisco e Fernanda Bion, passou a ficar hype no instagram, e, recentemente, investiu no público paulistano com duas lojas na capital, sendo uma dentro do JK, shopping de alto luxo.

As histórias são assustadoras.

A matéria do Universa ouviu 11 ex-funcionários da empresa que relataram todas as atrocidades que ouviam e pelas quais passavam diariamente, vindos diretamente das donas da marca. No meu inbox do instagram recebi mais relatos, de outras marcas cariocas inclusive. As histórias causaram repulsa e muita, mas muita gente (eu inclusa) foi esculhambar a Três na sua patética nota oficial, em que debocham de todos nós, com seu cinismo.
O escândalo da Três escancarou como é muito fácil ser seduzido por um projeto de marketing que faz uso do discurso empoderador, da moda ética e justa para fazer greenwashing e se dizer engajada das causas. Está em alta, ou seja, apropriar-se de discursos VENDE. Fizeram coleções com duas colegas minahs de blog, a Luiza Brasil, jornalista e ativista negra, com destaque no mundo das modas, e com a Nuta Vasconcellos, à frente do GWS, que é uma rede sobre desenvolvimento e autoestima das mulheres. Nuta recebeu ontem vários relatos de ex-funcionárias que foram obrigadas a esconderem os manequins de roupas para gordas, a mando da dona da marca. Ela inclusive nunca recebeu nenhum retorno sobre o aumento prometido da grade de tamanhos.

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Reuni alguns dos depoimentos que recebi por inbox do instagram, seja de funcionários que trabalharam lá ou em outras marcas conhecidas cariocas.

Quem trabalha no meio não ficou nem um pouco surpreso, pois é comum se deparar com declarações assim, infelizmente. Eu mesma já presenciei num evento a dona de uma marca falar que não existem minorias e nem machismo, que “somos todos seres humanos” – isso em pleno evento de dia das mães em que eu mediava a conversa. Imagina nos bastidores.

Uma marca familiar, em que a mãe e os dois filhos destilavam sua aristocracia branca para seus funcionários, o que chocou a todos foi perceber como somos facilmente manipuláveis pelo capitalismo. Como esse sistema cria mecanismos de sedução e deslumbre e nos coloca no meio para também arder. Sim, porque também temos nossa parcela de culpa aí, como bem relatou outra leitora: é preciso reavaliar URGENTE nossos critérios de compra, o ritmo em que compramos, bem como nosso poder de questionar, refletir e investigar. De querermos o menor preço a qualquer custo, novidades o tempo todo, tudo isso implica em contratar mão de obra mais barata, que produza de forma precária e veloz.

O erro começa desde o momento em que o trabalhador precisa sair de casa, pegar condução lotada e ter que mentir sobre o bairro em que reside, para poder ser contratado. Empresários se beneficiando dessa desigualdade para contratar com salários irrisórios e se acharem intocáveis – haja vista a demora para o Ministério Público apurar denúncias, a certeza de vivermos em um país onde a impunidade grita na nossa cara, uma elite que se mantém superior em relação a um grupo social mais desfavorecido, que precisa desses empregos para pagarem suas contas.

Conheço a marca há uns 5 anos e lembro de ter perguntado a eles na época onde as roupas eram produzidas – responderam com todo esse lorotelling, de que eram uma pequena empresa familiar, que tinham uma fábrica no interior do Estado, por isso conseguiam produzir com relativa rapidez. Achei ótimo, porque né, fiz minha parte, perguntei, responderam. Mas não consegui ir além de compreender que não basta saber quem costura suas roupas, mas de compreender que a cadeia de produção, toda ela, precisa ser justa.

Comecei a visitar ateliês de marcas e observar que faz muita diferença quando estamos ali, do ladinho da loja, conversando com modelistas, com costureiras, com quem monta as peças, bordadeiras e todos os envolvidos no processo das coleções. Isso demanda tempo, não se conhece uma marca e sua essência em passadinhas rápidas nas lojas ou no feed do instagram.

Marketing de aparências

Muita gente se sentiu enganada pelo discurso cheio de representatividade deles, fora os preços não muito caros. Acreditamos, apostamos, dava orgulho ter a sensação de constribuir. Mas uma coisa positiva, ao menos, é perceber que episódios assim possam contribuir para novos e importantes questionamentos da parte dos consumidores. De entendermos que não adianta apenas receber essas informações oriundas do instagram e de etiquetas das roupas. Tudo nesses espaços pode ser propagado como correto e maravilhoso, sendo que não nos diz NADA.

Não há a informação de como é a condição de trabalho dessas mulheres, o salário delas, o tratamento que recebem. Mesmo sob a justificativa que as pessoas precisam de emprego e um boicote acarretaria a demissão em massa, eu compreendo que NINGUÉM merece passar por tortura psicológica e física (com fome em backstage de eventos e papel higiênico regulado, como noticiado na matéria) para não fazer parte da estatística.
Torço e me coloco à disposição para tentar ajudar essas pessoas corajosas que denunciaram, assim como toda a equipe, a encontrarem empregos que as acolham e as valorizem.

Mas o que fazer?

Reduzir o consumo, entender que não precisamos de tanto, sempre, pode ser um importante começo. De verdade, havia séculos que eu não entrava nessa loja, tanto que nem sabia do novo layout dela e muito menos que estava em alguns shoppings do Rio e de SP. E não é alienação, mas buscar outras formas de atualizar meu guarda roupa e entender que o mercado precisa se adaptar a isso.

Justificar consumo só para não falir o sistema não contribui para a mudança de cenário. Não existe uma preocupação da indústria que mais emprega mulheres nesse país para com elas e muito menos com sustentabilidade. Estou lendo para tentar buscar mais informações sobre esse assunto, por isso a contribuição de vocês será muito bem vinda.
Também faz parte lutar contra uma sociedade racista, se posicionar implica em não comprar nessas lojas, assim como não admitir quem favorece a precarização do mercado de trabalho.

Riachuelo arquivada

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Eu fiquei MUITO feliz de ler o posicionamento da grande maioria nos comentários do post sobre a coleção especial da Riachuelo. Não dá para falar mesmo de empresa que pregava restrições de direitos trabalhistas, nem que se mostra favorável a reforma da previdência. Eu fui bem clara, apesar de breve, na minha colocação sobre a empresa e me mantenho assim. Muita gente estava me perguntando se eu não ia comentar sobre a coleção, mas se arrependimento matasse, eu estava estirada: mesmo gostando do trabalho da A. Niemeyer e querendo falar com imparcialidade, a Riachuelo não merecia esse cartaz por aqui mesmo não, por isso peço desculpas por ainda ter falado sobre e afirmar meu posicionamento declarado, inclusive, nas redes sociais e por email para a assessoria de imprensa da rede: EU NÃO ENTRO MAIS NA RIACHUELO e arquivei o post.

Não é nem um pouco fácil estar aqui sozinha criando conteúdo, então o retorno de vocês foi decisivo para guiar pautas novas pra cá. Obrigada e vamos nessa, porque moda é sobre política, SIM.

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