A moda política de Elza Soares

Ontem, dia 20 de janeiro, a cantora Elza Soares encantou, aos 91 anos. Eu estou particularmente muito emocionada. Assisti apenas um show dessa deusa de voz rouca, e hoje eu percebo que eu sabia pouco da sua trajetória, que foi apagada e boicotada por tantos anos pela mídia. Toda vez que Elza aparecia, era mais para pontuar que ela estava se relacionando com um homem 50 anos mais novo, com roupas deixando muita pele à mostra, as muitas plásticas. Mas Deus é mulher e Elza pode continuar e modernizar sua carreira com lançamentos aclamados principalmente pelo público jovem.

Com a potência inigualável da sua voz, Elza rasgava e remendava nossa alma, como bem pontuou minha amiga Maria Karina. Esse atravessamento tocava porque ela cantava para os seus; a negritude, o povo. Elza veio do povo, nascida no que é hoje Padre Miguel, depois moradora de Água Santa, subúrbio carioca, nunca deixou de olhar pra trás e compreender o que representava o seu canto. Sua voz e seu corpo vestiam seus protestos e é sobre isso que vamos falar, algumas histórias dos figurinos de Elza Soares que foram pura representatividade.

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Forçada por seu pai a casar aos 12 anos com um amigo dele, *ela ia levar café pro pai no trabalho e se abaixou pra ver um louvadeus, o menino bateu nela, os dois rolaram na briga e o pai pegou. Achando que estavam tendo relações, ele forçou o casamento. Elza teve o primeiro dos oito filhos, aos 13. Dois deles morreram ainda bebês, de desnutrição. Seu marido contraiu tuberculose e ela teve que trabalhar fora para poder vencer a fome e a miséria – trabalhou inclusive no Hospital Psiquiátrico em que Nise da Silveira desenvolvia seu trabalho, e furtava a comida quando todos iam embora. Voltou a ter que cuidar da casa quando o embuste melhorou. Impedida de estudar, sem perspectiva de sair daquela vida, reuniu forças para participar do programa de calouros do compositor Ary Barroso, na Rádio Tupi, há 68 anos atrás, e tentar ganhar o prêmio.

Elza pegou com sua mãe um vestido emprestado para ficar mais apresentável, mas, com a sua silhueta esquálida, precisou enchê-lo de alfinetes para que coubesse. Ao subir no palco, Ary estranhou aquela figura mal enjambrada, a plateia começou a rir, e ele a questionou “De que planeta você veio, minha filha?” Elza foi categórica “Eu venho do mesmo planeta que o seu, Sr. Ary, o Planeta Fome!”. Os risos cessaram, Elza soltou sua voz e foi nomeada ali mesmo uma estrela que nascia.

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Ela se autoreferenciou na história dos alfinetes, no início da sua carreira, para encomendar o figurino do disco e da turnê “Planeta fome”. Ser sua própria referência é saber que a sua história era potente demais, e isso não é para qualquer ser viente não, meus amigos. Em uma alusão ao vestido de alfinetes, o traje justo, com mais de 2 mil alfinetes, o trabalho de figurino da marca de upcycling curitibana H-AL (que vou contar com mais detalhes abaixo), trouxe a versão punk de Elza, que honra suas memórias e não se deixa apagar jamais. O álbum reune músicas de protesto e políticas, como a da foto, que gravou Comportamento Geral, de Gonzaguinha.

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“Fui espetada a vida inteira, passei fome de comida e hoje tenho outras fomes. Nesse novo figurino quis simbolizar o que sentia, o que sinto. Naquele dia só sentia os alfinetes me espetando”, diz Elza no texto de divulgação do álbum.

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A valorização da moda ética e artesanal

A parceria com os amigos da H-AL, que desenvolvem seu trabalho de criação em Curitiba de peças assimétricas, de formas criativas, a partir de sobras de tecidos, como vestidos de noivas de desapego, trouxe à cena uma Elza que valorizava uma moda ética, artesanal, sustentável e feita no Brasil. Eu tenho peças da marca e pude visitar a loja-atelier que eles tinham e era algo sen-sa-cio-nal, um trabalho primoroso de upcycling.

“Por intermédio de um amigo, o estilista da H-ALAL, Alexandre Linhares, conversou rapidamente com Elza no camarim de uma turnê, mas tempo suficiente para o carismático criador apresentar algumas fotos de seu trabalho e receber uma encomenda da cantora: um vestido com rosas. Ela se recordou de quando o compositor Lupicínio Rodrigues, no final dos anos 60, lhe ofereceu rosas ao final de um show na Boate Texas, no Rio, dizendo a batida frase das cantadas baratas: “rosas para uma Rosa”. Esquiva, ela retrucou algo como “não sou Rosa e não gosto”. Era mentira, e ele também sabia que ela era Elza e não Rosa e tinha ido conferir a interpretação de sua música “Se Acaso Você Chegasse”.”

Trecho retirado daqui porque a mãe aqui não deu conta de escrever tudo do zero, então tomem os créditos. 🙂

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Pouco tempo depois do encontro em Curitiba, Elza Soares recebeu novamente Alexandre Linhares, dessa vez em São Paulo, acompanhado de um vestido transparente de tule, com duzentas rosas vermelhas aplicadas e bordadas – todas feitas à mão.

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Para o figurino do show “A Mulher do Fim do Mundo” foi uma peça mais atrevida, dark, que foi moldada no corpo da cantora. Um macacão preto de vinil (encomenda dela) com chifres no ombro (sugestão dele) feitos com massa de modelar e correntes que descem pelo corpo. 

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Elza foi símbolo do empoderamento negro, viveu as dores mais profundas que um ser humano pode aguentar, mas se manteve firme para levar a sua voz e sua luta para mais pessoas. Dizia que a mulher do fim do mundo é aquela que não tem medo de viver – ela não temia nada na vida, mas tinha medo de sentir medo. Elza olhou nos olhos da morte, das drogas, da violência, do racismo, da misoginia, da fome, da miséria, e cantou. Sua voz levava as vozes de todas nós.

Cantou sobre traição, cantou sobre o gozo (“Pra Fuder”em seu ábum A Mulher do Fim do Mundo), cantou sobre o amor, cantou sobre violência doméstica (“você vai se arrepender de levantar a mão pra mim”), cantou sobre a desigualdade, cantou sobre racismo (“A carne mais barata do mercado é a carne negra”), cantou o feminismo. Elza cantou por todas nós, por isso tamanha potência, por isso a sua voz nunca se calará.

Viva Elza. Saravá, rainha!

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(foto de editorial para o caderno Ela, do jornal O Globo)

* editado 24/01/2022 às 15:45. Os amigos de Elza, da H-AL, me contaram a versão dela sobre seu primeiro casamento. Nas versões que li diziam q ela sofreu abuso; nessa entrevista para Bruna Lombardi, Elza contou o que realmente aconteceu.

Fonte:

Wikipedia

A Escotilha

G1

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